Agricultura familiar

Agricultura familiar: desafios e limites no desenvolvimento do Projeto e-COO

Este artigo tem como objetivo apresentar e discutir o desenvolvimento do Projeto e-COO, uma proposta inovadora que utiliza o cooperativismo de plataforma para fortalecer a agricultura familiar no sul do Brasil. O projeto, em andamento desde 2023, foi concebido para promover a gestão coletiva da produção, distribuição e comercialização de alimentos, utilizando uma plataforma digital que integra os princípios da economia solidária e das tecnologias sociais.

A estrutura do artigo segue uma abordagem que inicia com uma visão geral sobre a agricultura familiar e sua relevância no cenário brasileiro, destacando os desafios enfrentados por essa categoria no contexto atual. Em seguida, o texto explora os conceitos de cooperativismo de plataforma e economia solidária, evidenciando a convergência entre essas áreas como uma estratégia para o desenvolvimento de soluções tecnológicas inclusivas e sustentáveis.

Fundamentação teórica

A fundamentação teórico-metodológica do estudo está ancorada nas obras de Scholz (2017), Singer (2008), e Dagnino (2014), que discutem as intersecções entre economia solidária, tecnologias sociais e cooperativismo. Esses referenciais teóricos servem como base para a análise das metas do Projeto e-COO, que incluem a criação de indicadores sociais, a modelagem de um ecossistema tecnológico e a formação de um observatório do cooperativismo de plataforma.

O artigo aborda a relevância dos processos de aprendizagem vivenciados pela equipe de pesquisa em um projeto em andamento, que busca integrar os princípios da economia solidária e das tecnologias sociais na construção de uma estrutura tecnológica voltada para o cooperativismo de plataforma na agricultura familiar.

Ao longo de nossa trajetória de pesquisa e desenvolvimento da plataforma, confrontamo-nos com a realidade do inacabamento, que permeia tanto as investigações quanto os próprios pesquisadores. Reconhecendo os limites e as possibilidades que emergem desse contexto, identificamos a necessidade de estabelecer um diálogo entre o cooperativismo de plataforma, as tecnologias sociais e a economia solidária, levando em conta os conflitos socioambientais, as (in)justiças ambientais e as noções de território.

Embora as tecnologias sociais desempenhem um papel crucial no fortalecimento de grupos precarizados socioeconômica e ambientalmente, é importante reconhecer que, em algumas situações, a lógica neoliberal impõe novos limites. Mesmo com os avanços proporcionados por essas tecnologias, os obstáculos criados por esse modelo econômico acabam por restringir o alcance e a eficácia dessas soluções.

Essas barreiras se manifestam, sobretudo, no agravamento das desigualdades sociais, como o acesso à terra, e nas injustiças ambientais intensificadas pelas mudanças climáticas. Assim, torna-se fundamental abordar as causas estruturais dessas injustiças para que possamos ampliar nossos modos de enfrentamento às desigualdades socioambientais.

A agricultura familiar como ponto de partida

Segundo Silva e Costa (2023) historicamente, a agricultura brasileira foi estruturada a partir de diversos ciclos, desde a cana de açúcar, a produção cafeeira e, mais recentemente, pelas monoculturas de soja e milho. Para os autores, os ciclos da agricultura estavam frequentemente associados à criação dos latifúndios, sob a justificativa do desenvolvimento e/ou crescimento econômico.

A acumulação do direito de terras, bem como a ausência da reforma agrária, é um dos fatores que contribui para que o Brasil seja notadamente um país marcado pela desigualdade social. A desigualdade na distribuição da posse da terra no Brasil é uma das mais extremas do mundo, relacionada a processos históricos de grilagem, conflitos sociais e impactos ambientais (PINTO et al., 2020). Se, por um lado, grandes extensões de terra pertencem a um único dono, por outro lado, formou-se uma imensa maioria de despossuídos.

Passoni (2007, p.14) argumenta que no Brasil, a forma como se legitimou o acesso e a propriedade da terra seguiu uma lógica “socialmente perversa”, isso porque, a regulamentação das terras era feita a partir de documentos falsos e utilizando práticas de grilagem. Ao mesmo tempo em que os latifúndios se expandiram, também se criou uma massa de trabalhadores rurais pobres, sem direito à posse de suas terras, os quais, muitas vezes, foram vistos como praticantes de atividades criminosas.

Os latifúndios e seu modelo de desenvolvimento ocasionaram a expulsão significativa de agricultores familiares de suas terras, impedindo-os de continuar suas atividades. Além disso, muitos que seguiram com suas atividades, foram submetidos a uma série de violências e imposições, sem poder contar com o apoio ou proteção do Estado, especialmente porque não se tinha uma definição adequada na legislação dessa categoria (WANDERLEI, 2014).

Conceito de agricultura familiar

O conceito de agricultura familiar passa a ganhar notoriedade no Brasil a partir dos anos 1980, durante o processo de redemocratização. Ao longo dos anos 1990, esse conceito é discutido mundialmente e, dessa forma, aparecem outros conceitos correlatos, como a agricultura camponesa ou de pequena escala (CASTRO, 2023). Castro (2017) acrescenta que essa forma de agricultura é parte de um processo histórico que não é homogêneo e, tampouco, linear. Considera-se que a agricultura familiar ficou anos em condições de invisibilidade e só passou a fazer parte das discussões nas políticas públicas a partir dos anos 1990, através do marco central dessa categoria de trabalho dado pela criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) (BRASIL, 1995).

Resoluções sobre o conceito

A questão fundiária ainda representa um grande desafio no Brasil e está no cerne de importantes pautas, como a demarcação de terras indígenas e a Reforma Agrária. Atualmente, muitas famílias seguem lutando pelo acesso e pela regularização de terras. Nesse sentido, o PRONAF representou avanços e inovações nos desenhos fundiários no Brasil, mas, certamente, não foi capaz de eliminar as desigualdades e resolver tais problemas.

A resolução que instituiu o programa nem mesmo trouxe uma definição a respeito do conceito agricultura familiar. Essa definição aparece na Lei no 11.326 de 2006, isto é, mais de dez anos após a criação do PRONAF. No entanto, é possível notar que o artigo 3º da referida lei traz importantes considerações:

Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos:

  1. não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais;
  2. utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento;
  3. tenha percentual mínimo da renda familiar originada de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento, na forma definida pelo Poder Executivo;
  4. dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família.

Complementarmente, no § 2o do art. 3o, dessa mesma lei, consideram-se como beneficiários de políticas públicas destinadas aos agricultores familiares, os seguintes:

  1. silvicultores que atendam simultaneamente a todos os requisitos de que trata o caput deste artigo, cultivem florestas nativas ou exóticas e que promovam o manejo sustentável daqueles ambientes;
  2. aqüicultores que atendam simultaneamente a todos os requisitos de que trata o caput deste artigo e explorem reservatórios hídricos com superfície total de até 2ha (dois hectares) ou ocupem até 500m³ (quinhentos metros cúbicos) de água, quando a exploração se efetivar em tanques-rede;
  3. extrativistas que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos II, III e IV do caput deste artigo e exerçam essa atividade artesanalmente no meio rural, excluídos os garimpeiros e faiscadores;
  4. pescadores que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos I, II, III e IV do caput deste artigo e exerçam a atividade pesqueira artesanalmente.
  5. povos indígenas que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos II, III e IV do caput do art. 3º;
  6. integrantes de comunidades remanescentes de quilombos rurais e demais povos e comunidades tradicionais que atendam simultaneamente aos incisos II, III e IV do caput do art. 3º. (BRASIL, 2006).

As definições e o estabelecimento de critérios acerca da agricultura familiar foram importantes, sobretudo porque materializaram, em forma de lei, a existência dessa categoria social e, consequentemente, propiciaram a criação de políticas públicas e outros instrumentos que auxiliam essa classe de trabalhadores.

No entanto, há que se considerar que tais definições acabam por limitar e reduzir a complexidade social, cultural e ambiental que constitui o contexto do exercício das atividades na agricultura familiar (GRISA; SABOURIN; LE COQ, 2018). Assim, é possível afirmar que, em que pese toda a heterogeneidade que a compõe, a agricultura familiar é “uma instituição de reprodução da família, cujo núcleo está na relação direta com a terra e com a produção agrícola” (SILVA; COSTA, 2023, p.913).

A agricultura familiar x o agronegócio

As relações que os grupos sociais estabelecem com o ambiente em que vivem marcam diferenças políticas, econômicas, culturais e ambientais, isso porque as lógicas que as regem são distintas. A agricultura familiar e o agronegócio são duas formas de agricultura, mas são orientadas por perspectivas para o modo de produção de alimentos completamente diferentes. Passoni (2007, p. 10), destaca que:

“[…] A produção agropecuária em larga escala pressupõe a total transformação do ambiente, devastando áreas de florestas e utilizando o solo até a exaustão, de modo que se torna necessária a utilização de grande quantidade de insumos químicos, como fertilizantes e pesticidas. Uma prática nada sustentável, uma vez que recursos florestais e hídricos, fundamentais para o equilíbrio socioambiental do planeta, são sistematicamente destruídos”. (PASSONI, 2007, p. 20).

A insustentabilidade socioambiental, que caracteriza as práticas agrícolas levadas a cabo pelo agronegócio, permite a acumulação de capital e investimento em tecnologias, capazes de aumentar ainda mais os lucros dessas atividades (FERNANDES, 2010). Contudo, o pensamento é estritamente econômico e imediatista.

“A imagem do agronegócio foi construída para renovar a imagem da agricultura capitalista, para “modernizá-la”. É uma tentativa de ocultar o caráter concentrador, predador, expropriatório e excludente para dar relevância somente ao caráter produtivista, destacando o aumento da produção, da riqueza e das novas tecnologias“ (FERNANDES, 2010, p.1). 

A agricultura familiar opera de maneira distinta da lógica do agronegócio, especialmente no que diz respeito ao cuidado com a terra e ao planejamento de produção de alimentos a longo prazo. Essas diferenças muitas vezes levam à propagação de equívocos, como a associação da agricultura familiar a um modelo retrógrado que supostamente não utiliza tecnologias em suas práticas diárias.

Contudo, como aponta Machado Deponti (2014, p.10), “o desenvolvimento de técnicas de gestão que levem em conta as particularidades da agricultura familiar e as formas pelas quais ela pode se inserir de maneira competitiva e sustentável no mercado é escasso e inadequado”.

Tecnologias socias no dia a dia da agricultura familiar

O uso ou não de tecnologias no cotidiano da agricultura familiar não pode ser abordado a partir de apenas um ponto de vista. Há uma série de fatores que interconectam e influenciam essa realidade. No entanto, algumas considerações podem ser relevantes, como a impossibilidade de comparação entre as tecnologias utilizadas pela agricultura de larga escala e pela agricultura familiar.

Primeiramente, porque os objetivos dessas formas de trabalho com a terra são distintos, logo, o maquinário e os apetrechos utilizados não necessariamente são os mesmos. Segundo, Machado Dupont (2010) apesar da vasta gama de softwares livres disponíveis para gestão financeira, administração, contabilidade e análise de custos de produção, muitos deles não atendem às especificidades da agricultura familiar.

Além disso, mesmo que esses recursos tecnológicos fossem compatíveis com as práticas da agricultura familiar, os custos dos mesmos dificilmente poderiam ser financiados por um agricultor de pequena escala. Diante desse cenário, os investimentos financeiros e de conhecimento em tecnologias voltadas à agricultura, tendem a ser pensados para a modalidade de grande escala, que normalmente possui poder aquisitivo para comprá-las.

Tecnologias sociais e economia solidária em diálogo com a agricultura familiar

Nesse contexto, surge no Brasil, no início do século XXI, o conceito de Tecnologias Sociais (TSs) com o objetivo de solucionar problemas sociais enfrentados pelas classes menos favorecidas (OLIVEIRA; SILVA, 2012). As tecnologias sociais, podem operar como uma forma de diálogo entre os saberes científicos e populares, os quais se traduzem em uma linguagem tecnológica voltada para a criação de soluções socioambientais sustentáveis orientadas para situações específicas.

Através da aplicação do conhecimento local, as tecnologias sociais podem atuar como mediadoras entre as demandas sociais e suas possíveis soluções, transformando-se em uma solução tecnológica a problemas sociais existentes (ITS, 2007). No entanto, de acordo com Costa (2013), o adjetivo “social” propõe uma lógica mais sustentável e solidária de tecnologia para todas as camadas da sociedade, envolvendo a participação, empoderamento e autogestão de por seus usuários.

Importa salientar que as tecnologias sociais precisam refletir os processos históricos que constituem determinados grupos sociais, como uma tentativa de enfrentamento à racionalidade tecnológica convencional. De acordo com Dias e Novaes (2010, p.163), as TSs encontram um solo fértil para seu desenvolvimento em “organizações produtivas, como cooperativas populares, fábricas recuperadas e outros empreendimentos econômicos solidários”, assim como a agricultura familiar.

O universo da agricultura familiar apresenta heterogeneidades e singularidades que vão desde a forma de trabalhar até a organização das propriedades rurais familiares. Essa “ausência de convencionalidade” apresenta potencial para o desenvolvimento de tecnologias sociais que propiciam propostas de adoção de tecnologias distintas a convencional, “porque ali ainda existem, senão a propriedade coletiva, os vestígios que ela deixou em termos da possibilidade de trabalho cooperativo” (DAGNINO, 2014, p.122).

Trabalho cooperativo e agricultura familiar

Desde a primeira metade do século XX, tem-se registros da relação entre o trabalho cooperativo e a agricultura familiar. No entanto, com o passar dos anos houve uma expansão das cooperativas urbanas (ALVEAR et al., 2023), as quais passaram a registrar um número expressivo em outros contextos, como saúde, crédito e transporte. Contudo, no Brasil e, mais especificamente no Rio Grande do Sul, é possível observar que o setor agropecuário ainda é o mais expressivo em relação ao número de cooperados (OCB, 2020; 2022).

No que concerne ao trabalho cooperativo e a agricultura no Brasil, é importante salientar que se trata de um campo que comporta uma contraposição entre a produção rural de pequena escala e as grandes corporações. Esses primeiros são responsáveis por 70% da produção de alimentos e abastecimento do mercado de produtos consumidos pela sociedade brasileira (IBGE, 2022). Por sua vez, as grandes corporações, frequentemente associadas ao agronegócio, produzem commodities para a exportação, isto é, abastecem o mercado internacional com mercadorias primárias, as quais serão beneficiadas em outros países (COSTA et al., 2022).

Nesse sentido, parece haver um paradoxo, ou uma contradição, que se expressa pela capacidade da agricultura de “pequena” escala ser “grande” o suficiente para produzir alimentos para todo o país. Não obstante, a agricultura de larga escala, ao exportar commodities, agrega menor valor quando comparado com a potencialidade que teria, caso vendesse os produtos beneficiados.

Trata-se de pensar em duas perspectivas distintas: a primeira produz alimentos e a segunda produz lucro. As cooperativas ligadas ao ramo, por sua vez, também são capazes de manifestar os mesmos fundamentos expostos acima, como argumenta Paul Singer (2002) quando observa que as cooperativas agroindustriais incorporam a mesma lógica do agronegócio, na medida em que perdem seus princípios autogestionários.

Relação do cooperativismo e economia solidária

Na contramão da racionalidade do agrobusiness, a relação entre o cooperativismo e a economia solidária se expressa através de uma série de princípios, como a valorização da solidariedade, do bem comum e propriedade coletiva. Oliveira (2004) menciona que um empreendimento de economia solidária deve compreender as seguintes premissas: autogestão; participação efetiva; democracia direta; ações de cunho educativo; cooperação no trabalho; e distribuição igualitária dos resultados e benefícios.

Há, portanto, uma série de entraves para a articulação e manutenção dos valores preconizados pela economia solidária. A primeira delas é resistir à lógica capitalista como sendo a única possível. Além disso, destaca-se a dificuldade de encontrar recursos sociais e tecnológicos fundamentados numa perspectiva contra-hegemônica. Isto é, que não estejam à serviço da reprodução dos ideais e das formas de organização capitalistas. Dagnino (2019) acrescenta que a dificuldade de acesso à tecnologia se torna ainda maior quando considerada a necessidade de que essas sejam adequadas aos valores e premissas da economia solidária.

Tecnologias sociais

As tecnologias sociais cumprem um importante papel no que concerne a preocupação em se adaptar às realidades das quais nascem e para as quais são destinadas, considerando os conhecimentos e necessidades locais. Neste contexto, destaca-se o entrelaçamento que vem sendo proposto que envolve plataformas digitais e o comércio solidário. Essa forma de cooperativismo consegue proporcionar condições de trabalho e salários mais justos, bem como desenvolvimento pessoal e profissional. 

Trata-se de plataformas cooperativas que são controladas pelos trabalhadores associados, ao invés da forma capitalista tradicionalmente conhecida, em que os proprietários são externos (ALVEAR et al., 2023). O cooperativismo de plataforma nasce, portanto, como uma forma de fazer frente às “economias de compartilhamento”, que mantêm a lógica de concentração de lucros já conhecidas, em plataformas digitais, como é o caso da Amazon e do Ifood, por exemplo (RÜSCHE; SANTINI, 2017).

Cooperativismo de plataforma e a experiência do Projeto e-COO

O cooperativismo de plataforma surge como uma tentativa de enfrentamento ao capitalismo de plataforma e se ocupa de temas como propriedade coletiva, trabalho associado, pagamento e condições de trabalho decentes, governança democrática, transparência e portabilidade de dados (SCHOLZ, 2017). Nesse sentido, o cooperativismo de plataforma “envolve modelos de propriedade democrática para a Internet” (SCHOLZ, 2017, p.17).

Em contraposição às formas de trabalho capitalistas, o cooperativismo de plataforma pode operar na interface da economia solidária e da tecnologia social, reestruturando as relações de trabalho para formas democráticas, que propõem arranjos justos de produção, distribuição e consumo, e coerentes com valores que respeitem o trabalho digno (fairwork) (GROHMANN, 2020).

Modelos de cooperativismo de plataforma

Nos últimos anos, o aumento das múltiplas e complexas formas de trabalho via plataformas digitais, ditas plataformas de compartilhamento, produzidas por modelo hegemônico neoliberal, têm causado problemas relacionados às condições dos trabalhadores e a redistribuição de ganhos (GROHMANN, 2018; 2020). Em relação aos modelos de cooperativismo de plataforma, Alvear et al. (2023, p. 51) argumentam que:

“Existem diversas tipologias ou modelos possíveis para o cooperativismo de plataforma, incluindo aí cooperativas de trabalhadores e trabalhadoras que atuam em paralelo às plataformas capitalistas controladas por multinacionais; cooperativas de desenvolvimento tecnológico, voltadas para a criação de ferramentas baseadas em livre compartilhamento e bens comuns digitais; cooperativas de distribuição e comércio, como as organizadas para conectar consumidores nas cidades com pequenos produtores no campo. Isso só para relacionar algumas das formas de organização digital possíveis dentro de uma perspectiva de Economia solidária.” (ALVEAR et al., 2015, p. 51).

Como é possível observar a partir da argumentação de Alvear et al. (2015) o cooperativismo de plataforma se apresenta como uma proposta tecnológica capaz de ser integrada aos contextos de trabalho já existentes, tanto no que se refere aos serviços prestados no campo quanto na cidade, pois trata-se de uma proposta de articulação de demandas sociais numa linguagem e organização digital.

Apesar dessa plasticidade de aplicação em diferentes contextos, há uma série de desafios para sua efetivação, que vão desde a (auto)-organização, gestão, recursos tecnológicos, perspectivas educativas, financiamento, escalas de trabalho e salário e a desigualdade competitiva com as multinacionais (SCHOLZ, 2017).

A partir da articulação dos campos da agricultura familiar, tecnologias sociais, economia solidária e cooperativismo de plataforma, foi elaborado o Projeto e-COO, o qual foi aprovado em maio de 2023 e tem previsão de 24 meses de duração. A proposta é financiada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR).

Propósito do projeto e-COO

O propósito dessa pesquisa é desenvolver uma tecnologia social voltada para o fortalecimento da agricultura familiar, através da elaboração de uma plataforma tecnológica que utiliza indicadores sociais para recomendação e auxílio à gestão da produção, compras, vendas e distribuição coletiva. O modelo envolverá tecnologia social inovadora com base no cooperativismo de plataforma e será aplicado, inicialmente, em dezessete municípios localizados no sul do estado do Rio Grande do Sul (Figura 1), fortalecendo a cadeia local da agricultura familiar.

Figura 1. Região Geográfica Imediata de Pelotas (IBGE, 2017).

Fonte: dados da pesquisa.

O projeto visa a formação e consolidação de um modelo para o cooperativismo de plataforma elaborado na região sul do país, mas que sirva para todo território nacional, através do qual as relações de compra e venda envolvam empreendimentos solidários, oriundos da agricultura familiar. Tais características se alinham aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), principalmente ao ODS 8 (trabalho decente e crescimento econômico), ODS 11 (cidades e comunidades sustentáveis) e ODS 12 (consumo e produção responsáveis).

A proposta é, portanto, estabelecer, em meio digital, estruturas regionais para oferta, consumo, logística, acesso a fornecedores, perfil produtivo e organização financeira entre os diferentes atores da economia solidária. O projeto avança em relação a pesquisas sobre cooperativismo de plataforma e no apoio ao fortalecimento da agricultura familiar no país, pois propõe um projeto-piloto em articulação com políticas públicas, com potencial de desenvolvimento tecnológico e inovação voltadas para a gestão democrática do trabalho neste campo que, como foi dito anteriormente, ocupa uma posição de desvantagem quando comparado com o agronegócio, por exemplo. 

Bases teóricas

De acordo com a filiação teórica do projeto, no que concerne aos princípios de trabalho digno (fairwork), economia solidária e tecnologia social, apresentam-se o processo de elaboração dessa proposta, a qual se inspira em outros trabalhos desenvolvidos e publicados pelo Observatório do cooperativismo de plataforma (https://cooperativismodeplataforma.com.br/) e pelo DigiLabour (https://digilabour.com.br).

Dessa forma, pretende-se caminhar rumo à sustentabilidade das relações de venda e consumo de produtos da agricultura familiar através do desenvolvimento de tecnologias compatíveis com suas necessidades e objetivos. Para tanto, servem de inspiração e referenciais como Señoritas Courier de São Paulo – SP; PedalExpress de Porto Alegre – RS; e Contrate quem Luta (https://contratequemluta.com) criado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

Núcleos do projeto

O projeto e-COO se estrutura a partir de três núcleos: Social; Comunicação; e da Ciência da Computação, todos a fim de elaborar uma plataforma tecnológica no contexto da agricultura familiar. Os três núcleos trabalham de forma sincronizada para levar a cabo o cumprimento das cinco metas (Figura 2), sendo essas: Diagnóstico; Indicadores Sociais; Modelagem do Ecossistema Tecnológico; Transferência Tecnológica; e Observatório de Cooperativismo de Plataforma.

Figura 2. Metas do Projeto e-COO

Fonte: dados da pesquisa.

Metas

A primeira meta envolve a realização de um Diagnóstico, ou seja, o mapeamento da produção, da comercialização, da distribuição e do consumo de alimentos da agricultura familiar produzidos pelas comunidades locais. Para tanto, foram elaborados questionários às unidades da EMATER, aos produtores da agricultura familiar e para quatros categorias de consumidores (individuais, prosumidores, institucionais e empresariais).

Para a segunda meta, tendo como referência a aplicação dos questionários por meio de entrevistas, serão formulados indicadores sociais, os quais estarão relacionados ao fomento das cadeias de produtos, em um contexto de uso de tecnologias sociais baseadas no cooperativismo de plataforma.

A terceira meta contempla modelagem de um Ecossistema Tecnológico para obter um Mínimo Produto Viável (MVP), o qual se encontra em estágio inicial, isto é, um esboço de sua arquitetura. Em outras palavras, nessa fase do projeto o produto gerado até então é a prova conceito, ou seja, uma versão mais simples e enxuta da plataforma, para o qual o objetivo principal é apresentar a ideia e executar os testes primários. A mesma será testada, analisada e validada, buscando identificar os impactos sociais e os resultados das transformações ocorridas no campo da agricultura familiar da região de estudo.

A quarta etapa, ainda não iniciada, propõe um modelo de Transferência Tecnológica que envolve a gestão aberta e compartilhada da plataforma, com possibilidade de participação do setor público e privado e de organizações da sociedade civil.

A quinta etapa, que contempla o Observatório de Cooperativismo de Plataforma, se desenvolve ao longo dos 24 meses do projeto. A mesma visa o fortalecimento da governança e ações coletivas, através da divulgação do projeto e suas ações em sites voltados para o tema, feiras, congressos e eventos científicos. Em outras palavras, é através deste Observatório que se oportuniza o entrelaçamento da produção de conhecimento em meio científico com as ações práticas de construção da plataforma.

Os processos e os aprendizados: reflexões teórico-metodológicas no desenvolvimento do Projeto e-COO

Tendo em vista que o Projeto e-COO visa contribuir com o fortalecimento da agricultura familiar e do cooperativismo de plataforma com base nos princípios da economia solidária e das tecnologias sociais, o mesmo se configura como uma inovação tecnológica. Sendo o desafio articular os campos de produção de conhecimento: agricultura familiar, tecnologias sociais, economia solidária e cooperativismo de plataforma. 

Histórico do cooperativismo

O cooperativismo tem uma rica trajetória histórica, que remonta a mais de 150 anos. Uma das primeiras experiências modernas de cooperativas surgiu em 1844, quando 28 tecelões se uniram em Rochdale, Manchester, centro da Revolução Industrial na Europa. Essa associação, conhecida como os Probos Pioneiros de Rochdale, resultou na cooperativa de Rochdale, que foi criada com o capital dos trabalhadores para aumentar o poder de compra coletivo (ALVEAR et al., 2023; BARZOTTO; VIEIRA, 2019). Esse movimento refletia a necessidade de organização coletiva dos trabalhadores para garantir acesso a insumos essenciais.

Em 2016, Trebor Scholz (2017) introduziu o conceito de cooperativismo de plataforma, que consiste na criação de plataformas digitais voltadas para trabalhadores. Essa abordagem surge como uma resposta ao capitalismo de plataforma, abordando questões como propriedade coletiva, remuneração justa, condições de trabalho dignas e governança democrática.

O cooperativismo de plataforma busca reverter as desigualdades frequentemente associadas ao modelo capitalista, permitindo que os trabalhadores não sejam apenas prestadores de serviços, mas também coproprietários da plataforma digital que utilizam, aumentando seu controle sobre as condições de trabalho e remuneração. Assim, alinhamos nossos objetivos à proposta do fairwork (GROHMANN, 2020), buscando contribuir para a criação de plataformas que promovam formas de trabalho mais justas.

Trabalho justo

A luta por trabalho digno é uma questão central nas reivindicações trabalhistas do século XX e foi formalizada em 1999 pela Organização Internacional do Trabalho. No século XXI, essa demanda se mantém na Agenda 2030 da ONU, dentro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) (REBECHI et al., 2023). A ONU reconhece que o trabalho decente é fundamental para erradicar a pobreza e promover a prosperidade.

A premissa de um trabalho justo e digno é uma diretriz do Projeto e-COO, que adota os princípios da Economia Solidária, um conjunto de práticas que busca promover justiça social e econômica. Paul Singer argumenta que “não se pode ignorar que a economia solidária é parte integrante da formação social capitalista, na qual a concentração do capital incorpora o progresso técnico e determina as condições de competitividade em cada mercado” (SINGER, 2008, p. 109). A economia solidária surge como uma alternativa ao modelo neoliberal, promovendo formas mais justas de produção e comercialização.

Economia solidária

Singer (1997) discute a economia solidária como uma resposta à desigualdade, ressaltando sua capacidade de gerar renda e empoderar comunidades. Em sua análise, Singer (2008) destaca a dimensão cooperativa como essencial para a consolidação da economia solidária como alternativa viável ao capitalismo tradicional. Embora busque alternativas ao modelo capitalista, a economia solidária não opera isoladamente.

A formação de cooperativas revela uma estratégia organizacional que fortalece o cooperativismo frente às dinâmicas do capitalismo. Em um cenário de concentração de capital, a inovação tecnológica tende a acentuar essas desigualdades. Assim, a economia solidária busca mitigar os efeitos da concentração de capital, ao mesmo tempo em que é influenciada por essas condições, evidenciando a interdependência entre os dois sistemas (SINGER, 2008).

Dessa forma, em contextos de competição crescente e inovação tecnológica, a economia solidária deve se adaptar, propondo soluções que possam coexistir ou desafiar o paradigma capitalista. O cooperativismo de plataforma surge como uma alternativa que potencializa essa lógica de colaboração entre cooperativas. Um caminho viável para o desenvolvimento de projetos de economia solidária é entrelaça-los com iniciativas de tecnologias sociais, que podem se manifestar por meio do cooperativismo de plataforma. 

Tecnologias sociais

Dagnino (2014) oferece uma perspectiva crítica sobre as tecnologias sociais, entendendo-as como ferramentas de transformação social que promovem inclusão e desenvolvimento. As tecnologias sociais são concebidas para atender necessidades específicas das comunidades, integrando saberes técnicos e humanos, distinguindo-se da visão tradicional de tecnologia, frequentemente associada a disciplinas como engenharia e ciências exatas.

A relação entre ciências humanas e tecnologia é uma perspectiva relativamente recente. Historicamente, essas ciências eram vistas apenas como usuárias de tecnologias desenvolvidas por outras áreas. No entanto, ao expandir essa visão, é possível compreender as tecnologias sociais como algo que vai além de instrumentos materiais (ADAMS et al., 2011).

Ao caracterizar a tecnologia como “social”, reconhecemos que não é neutra e que suas aplicações podem ter impactos variados (Dagnino, 2004). Esse entendimento desafia a concepção tradicional de tecnologia, que frequentemente prioriza o lucro em detrimento do bem-estar social e ambiental. Surge, assim, o movimento por uma tecnologia social que, segundo Dagnino (2009), nega a tecnologia convencional e busca alternativas que priorizem o coletivo e a sustentabilidade.

O conceito de tecnologia social abrange “produtos, técnicas e/ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas em interação com a comunidade, que representam soluções efetivas para a transformação social” (RTS, 2010, in ADAMS et al., 2011, p. 20). Essa definição justifica a escolha por uma abordagem teórica e metodológica que une esses dois aspectos, pois são indissociáveis.

A integração dos conceitos teóricos fortalece a base metodológica do projeto, garantindo que ele contribua para uma análise adequada do contexto dos agricultores familiares, evitando a aplicação de técnicas desconectadas de sua base teórica. Minayo e Deslandes (2007, p. 15) enfatizam que “o endeusamento das técnicas produz um formalismo árido ou respostas estereotipadas. Seu desprezo, ao contrário, leva ao empirismo ilusório ou a especulações abstratas e estéreis”. 

Intersecções dos conceitos para o Projeto e-COO

A associação entre os princípios da economia solidária e as tecnologias sociais é essencial para o Projeto e-COO, pois facilita a articulação das demandas dos agricultores familiares com as inovações tecnológicas disponíveis, integrando essas experiências ao cooperativismo de plataforma. O Projeto não apenas aborda uma necessidade imediata de comercialização, mas também se posiciona como um agente de transformação social, promovendo práticas cooperativas e solidárias por meio de plataformas digitais, desafiando a lógica capitalista que prioriza a individualidade e a competição.

A tecnologia social se alinha à perspectiva do cooperativismo de plataforma, pois utiliza plataformas digitais para facilitar a colaboração entre cooperativas e seus membros, promovendo um modelo de organização que valoriza a participação e autonomia das comunidades. Essas plataformas oferecem ferramentas para gestão e comercialização, além de fomentar a troca de conhecimentos e experiências, essenciais para o fortalecimento do cooperativismo e da economia solidária.

Alvear et al. (2023) destacam que “entre as várias dificuldades enfrentadas por cooperativas e empreendimentos econômicos solidários, uma delas é o acesso a tecnologias, especialmente aquelas que se adequam às suas formas de organização e valores. Autores como Dagnino (2004; 2019) e Varanda e Bocayuva (2009) enfatizam que as tecnologias convencionais reforçam valores capitalistas, enquanto a Tecnologia Social se mostra mais adequada aos empreendimentos solidários.

A integração da tecnologia social e da economia solidária ao cooperativismo de plataforma pode ajudar a construir redes mais robustas, permitindo que cooperativas de diferentes setores se unam e desenvolvam soluções adaptadas às suas realidades locais. Isso é particularmente relevante em contextos de vulnerabilidade, onde as comunidades necessitam de suporte para enfrentar desafios econômicos e sociais.

Reflexões sobre a tecnologia social proposta pelo projeto

Atualmente, não é viável avaliar a eficiência da tecnologia proposta pelo projeto, pois ainda está em fase de desenvolvimento. No entanto, algumas reflexões sobre esse processo podem ser discutidas e apresentadas como elementos fundamentais para dar suporte à continuidade do trabalho.

A análise de uma perspectiva mais conceitual e teórica possibilita a criação das estruturas que compõem a entrega prática: a plataforma. Na medida em que o projeto avança, torna-se mais evidente que os fundamentos teóricos e metodológicos são os grandes diferenciais para a construção de uma proposta que esteja na interface das tecnologias sociais e da agricultura familiar. 

Tais aspectos são importantes de serem considerados no processo de construção da pesquisa porque, como se sabe, na atualidade já se tem recursos e conhecimentos adquiridos capazes de criar plataformas digitais voltadas para quase todas as necessidades contemporâneas.

Agricultores(as) familiares como construtores da pesquisa

Uma plataforma digital para comercialização de produtos não requer grandes esforços de pesquisa e nem fomento para tal, bastaria somente contratar profissionais da área. No entanto, o papel desafiador que cabe às instituições envolvidas no desenvolvimento dessa plataforma tecnológica é garantir que o processo de elaboração da mesma seja, de fato, uma produção científica, que reflita as condições históricas, políticas, sociais e ambientais em que se desenvolve.

Nesse sentido, não se trata de apresentar a agricultura familiar como objeto de estudo, mas de colocar seus sujeitos como construtores dessa pesquisa. Quintero (2015) ao discutir temas relativos à antropologia do desenvolvimento, o pesquisador ressalta a importância desse “esforço antropológico” que envolve trabalhar com populações que têm seus modos de vida ameaçados por intervenções de desenvolvimento.

Assim, é de suma importância que seja levado em consideração o acúmulo teórico e prático que o campo dispõe, sobretudo nos contextos em que se enseja afirmar que o fazer científico é um processo de construção entre pesquisadores e pesquisados.

Nas palavras de Minayo e Deslandes (2007, p. 13) a pesquisa social “lida com seres humanos que, por razões culturais de classe, de faixa etária, ou por qualquer outro motivo, têm um substrato comum de identidade com o investigador, tornando-os solidariamente imbricados e comprometidos”.

Processos de aprendizagem

É possível considerar que o Projeto e-COO apresenta potencial para contribuir com a valorização dos processos de aprendizagem enquanto fazer científico, posicionados na interface da tecnologia social, economia solidária e cooperativismo de plataforma. Isso porque se propõe a aprender com seus interlocutores, de forma horizontal, renunciando à ciência colonizadora, que busca impor seus pretensos saberes, sem se ocupar de relativizar noções pré-concebidas acerca de seus temas de estudo. 

Não se trata, portanto, apenas de disponibilizar uma plataforma tecnológica para facilitar o consumo de produtos da agricultura familiar, mas sim de valorizar os processos de aprendizagem que envolvem a elaboração e a maturação de experiências que geram indicadores sociais. Esses indicadores precisam ser traduzidos em uma linguagem tecnológica que contribua para a instrumentalização dessa categoria social.

Contudo, é importante reconhecer que nem sempre as tecnologias serão capazes de resolver os problemas enfrentados por essas comunidades. Muitas vezes, as soluções tecnológicas não são suficientes para lidar com as complexidades das realidades sociais, econômicas e ambientais em que estão inseridas. 

Assim, enquanto a tecnologia pode ser um recurso valioso, ela deve ser parte de uma abordagem mais ampla que inclua estratégias de desenvolvimento sustentável e justiça social, garantindo que as necessidades e aspirações das comunidades sejam amplamente discutidas, dentro de seus limites e possibilidades. Nesse sentido, destacamos, a seguir, abordagens teóricas que podem ser relevantes para a realização de pesquisas envolvendo tecnologias sociais, agricultura familiar, economia solidária e cooperativismo de plataforma.

Reflexões emergentes: olhares para o presente e o futuro a partir do Projeto e-COO

Iniciamos essa seção com o olhar voltado para as enchentes que o  Rio Grande do Sul enfrentou, resultando  na maior catástrofe climática de sua história. As inundações afetaram um total de 418 cidades, em torno de 90% dos municípios gaúchos, com mais de 2 milhões de pessoas impactadas (RÜCKERT, 2024).

Mapas do Núcleo Porto Alegre do INCT Observatório das Metrópoles mostram que as cheias no Rio Grande do Sul afetaram 2,3 milhões de pessoas, resultando em 157 mortes e quase 658 mil desabrigados. A análise revela que as áreas mais impactadas pelas enchentes são as mais pobres, com uma alta concentração de população negra. André Augustin, pesquisador do Núcleo, destaca a importância do recorte étnico-racial, pois a população negra é a menos favorecida em termos de renda e educação. 

Rio Grande e as enchetes

O município de Rio Grande, situado no litoral sul do Estado do Rio Grande do Sul, no Extremo Sul do Brasil, abriga a desembocadura da Lagoa dos Patos. A região é tradicionalmente caracterizada pelas atividades de agricultura familiar e pesca artesanal, especialmente nas áreas ao redor da Lagoa. Durante as enchentes, essas localidades foram as mais impactadas pelas águas, tendo suas atividades total ou parcialmente impactadas pelos alagamentos (Figura 3).

Figura 3. Região afetada pela enchente.

Fonte: dados da pesquisa.

Esse evento histórico nos permite perceber que o Rio Grande do Sul, assim como o Brasil e o mundo, vive o que Stengers (2015) chama de “tempo das catástrofes”. No caso específico das enchentes, as mais afetadas foram as famílias cujas vidas e atividades econômicas estão ligadas à Lagoa dos Patos, principalmente os agricultores familiares e pescadores artesanais.

A catástrofe ocorreu justamente enquanto estávamos desenvolvendo uma plataforma tecnológica voltada para o fortalecimento da agricultura familiar na região. Esse acontecimento nos levou a refletir sobre os limites impostos pelas desigualdades e injustiças socioambientais, que têm se agravado com as catástrofes climáticas.

Leia também: Distribuição de Cestas Básicas para Agricultores Familiares em Rio Grande

Isabelle Stengers (2015) é categórica ao afirmar que essas catástrofes socioambientais são reflexo da sociedade capitalista e neoliberal. A autora, ao examinar a passagem do Furacão Katrina em 2005 afirmou que as condições socioeconômicas foram decisivas para separar a parte da população que conseguiu debelar os efeitos do furacão, sendo, como de costume, a parte mais precarizada socioeconomicamente, a parte que mais sofreu os efeitos da catástrofe (STENGER, 2015).

Desigualdades socioambientais

A nosso ver, a emergência das catástrofes explícita e exacerba as desigualdades socioambientais. Dessa forma, é necessário que consigamos colocar no nosso horizonte de práticas e pesquisas, a relação entre relação sociedade-natureza que está inexoravelmente ligada ao modelo econômico que tem como base a mercantilização dos territórios, envolvendo um quadro de desigualdades e injustiças socioambientais. Entendemos, ainda, que tal debate sobre a relação sociedade-natureza precisa ser realizado a partir da dimensão dos conflitos socioambientais.

Os conflitos ambientais surgem das distintas práticas de apropriação técnica, social e cultural do mundo material. Nesse sentido, tais conflitos não se restringem apenas a situações em que determinadas práticas de apropriação material já estejam em curso, mas se iniciam mesmo desde a concepção e/ou planejamento de certa atividade espacial ou territorial (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010, p. 17).  

Agricultura familiar

No caso da agricultura familiar, é possível observar que a mesma estabelece uma relação conflitiva com o agronegócio (WINCKLER et al. 2018) a qual revela assimetrias nas formas de disputa pela posse e uso dos territórios explicitando as desigualdades e injustiças socioambientais.

O modelo neoliberal, conforme apontado por Svampa (2013), intensifica a exploração e a exportação de recursos naturais, caracterizando-se como neoextrativismo. Esse processo resulta na desestruturação dos territórios, com a perda da biodiversidade, a fragilização da economia regional e o deslocamento de comunidades devido à concentração de terras nas mãos de poucos. Tal fenômeno, que favorece uma minoria em detrimento de amplos grupos populacionais, é considerado uma forma de injustiça ambiental (ACSELRAD, 2009).

Na sociedade, os sujeitos sociais apresentam-se como portadores de relações e interações diferenciadas com o meio ambiente, considerando como uma construção ao mesmo tempo simbólica, social e material. Além de diversos, os sujeitos se localizam desigualmente na sociedade. São, então, portadores de visões concorrenciais sobre o meio ambiente e a natureza, fato que chama a atenção para as desigualdades na distribuição de recursos naturais e dos riscos do desenvolvimento (ZHOURI; OLIVEIRA, 2010, p. 444).

Dessa forma, entendemos que nossas pesquisas precisam incorporar a concepção de tecnologias sociais associadas ao debate dos conflitos socioambientais e (in)justiça ambiental, incluindo a discussão sobre os usos do território.

Usos do território

Vivemos com uma noção de território herdada da Modernidade incompleta e do seu legado de conceitos puros, tantas vezes atravessando os séculos praticamente intocados. É o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto da análise social. Trata-se de uma forma impura, um híbrido, uma noção que, por isso mesmo, carece de constante revisão histórica. O que ele tem de permanente é ser nosso quadro de vida. Seu entendimento é, pois, fundamental para afastar o risco de alienação, o risco da perda do sentido da existência individual e coletiva, o risco de renúncia ao futuro (SANTOS, 2005, p. 255). 

Nesta perspectiva, conforme Milton Santos (2005) aponta, o território guarda em si o sentido da existência do indivíduo e também dos coletivos e, por isso, sua análise é tão cara, pois, seus usos são produtores e produtos de significados, que se retroalimentam de forma dinâmica na sociedade, como diz Glória Maria Vargas.

Transformação do território

O território é o resultado de um processo social de apropriação e transformação do espaço que, já como território, se converte no sustento material das práticas sociais. Esta materialidade é o que proporciona concretude à sociedade. Quando as práticas sociais mudam, muda também o território. Isto indica que o território está em constante transformação e que a sociedade está num processo contínuo de territorialização, isto é, de construção de território (VARGAS, 2014, p. 307). 

Segundo Fernandes (2010, p. 5) “a cada ano o agronegócio se territorializa com maior rapidez e desterritorializa a agricultura camponesa ou familiar”.  Nesse sentido, a agricultura familiar, em sua relação conflitiva e desigual com o agronegócio, no Brasil é causa e consequência da construção do território.

Sua formação está associada ao processo de consolidação do país como portador dos grandes latifúndios e à luta pela terra por parte daqueles que não detinham o poder. Embora seja uma categoria antiga, pode-se observar através de seu histórico, que a mesma ganha novos contornos e possibilidades de discussão (WANDERLEY, 2014).  

Conflitos socioambientais e (in)justiça ambiental

Diante dessas novas possibilidades de discussão, reconhecemos a necessidade de incluir em nossas pesquisas a dimensão dos conflitos socioambientais e da (in)justiça ambiental, assim como tratar o território como uma categoria essencial de análise.

Como abordamos ao longo deste texto, a proposta do Projeto E-COO, enquanto inovação e pesquisa tecnológica, se justifica pela sua capacidade de gerar reflexões que fortaleçam a agricultura familiar, abrangendo desde as práticas cotidianas até a produção científica que forneça bases sólidas para a tomada de decisões mais adequadas por parte do poder público e dos órgãos competentes.

Conclusões provisórias

Neste artigo, discutimos o desenvolvimento do Projeto e-COO, uma tecnologia social voltada ao fortalecimento da agricultura familiar através do cooperativismo de plataforma. Inicialmente, abordamos os desafios históricos enfrentados pela agricultura familiar no Brasil e exploramos a importância das tecnologias sociais e da economia solidária como estratégias para promover justiça socioambiental. Ao longo do texto, apresentamos o cooperativismo de plataforma como uma proposta inovadora que busca democratizar o acesso à comercialização, produção e distribuição de alimentos.

Potenciais e limites do projeto

A experiência com o desenvolvimento da plataforma revelou tanto o potencial quanto os limites dessa tecnologia social frente às desigualdades socioambientais e às catástrofes climáticas, intensificadas pela lógica neoliberal. Embora o cooperativismo de plataforma ofereça alternativas para fortalecer práticas de autogestão e solidariedade, ele encontra barreiras estruturais significativas, impostas pela concentração de poder e riqueza que caracterizam o sistema econômico vigente.

Dado o caráter inicial do projeto que está em processo de desenvolvimento, ainda não é possível avaliar a eficácia da tecnologia social que está sendo produzida, nem mesmo sua adequação ao cooperativismo de plataforma. No entanto, é relevante apresentar o processo de construção dessa análise do processo de construção e as aprendizagens teórico-metodológicas que emergiram dessa experiência.

Acreditamos que, ao apresentar nossas escolhas teórico-metodológicas, poderemos contribuir com nossos erros e acertos para outras pesquisas na interface da agricultura familiar, tecnologias sociais, cooperativismo de plataforma e economia solidária.

Concluímos que nossa experiência com o Projeto E-COO destacou as possibilidades de inovação, mas também os limites impostos pelo modelo neoliberal. Essas barreiras apontam para a necessidade de repensar as estratégias de enfrentamento às desigualdades, promovendo tecnologias sociais que considerem as complexidades dos conflitos socioambientais.

O cooperativismo de plataforma, nesse sentido, deve ser visto não apenas como uma inovação tecnológica, mas como uma estratégia de transformação social, capaz de promover maior equidade e justiça socioambiental.

Como perspectivas futuras, entendemos que será necessário incorporar o debate socioambiental que concerne a agricultura familiar, através da produção de conhecimento envolvendo pesquisas que emergem da relação entre sujeitos e territórios. Bem como, formas de pertencimento e alargamento de percepções de desenvolvimento e progresso, questionando e falseando a visão neoliberal, que associa esses termos a geração de lucros, independentemente do grau de exploração humana e ambiental.

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Autores: Raizza Da Costa Lopes, Viviani Rios Kwecko e Kamila Debian Victor.

Artigo originalmente publicado no 2º Simpósio Brasileiro de Ensino, Pesquisa e Extensão em Tecnologia Social (SEPETS).

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