Entre os meses de abril e maio de 2024 o Rio Grande do Sul (RS) vivenciou a maior enchente de sua história, superando a histórica marca de inundação da década de 40. Muitos foram os impactos, entre eles a dificuldade de acesso da população a água e a alimentos. Pelo menos 80% dos agricultores familiares do município de Rio Grande foram diretamente afetados pela cheia da Lagoa dos Patos, com perda completa ou parcial de sua produção.
A atividade agrícola dessas comunidades apresenta características únicas, influenciadas pela forte presença do corpo lagunar. Isso significa que estão sujeitas a variações no nível da água e na salinidade, impactando diretamente o solo das áreas de cultivo.
O município é vulnerável a inundações, que ocorrem tanto devido ao intenso volume de chuvas acumuladas no estado, quanto em menor escala com chuvas locais e regionais. Além da perda da produção, as próprias famílias de agricultores ficaram desprovidas de acesso a alimentos, durante a enchente do início do ano.
Entendemos que a Tecnologia Social se refere a práticas e métodos que buscam solucionar questões sociais, promovendo inclusão e desenvolvimento sustentável. Ela se concentra na interação entre a tecnologia e as necessidades da sociedade, visando a transformação social e a melhoria da qualidade de vida (Dagnino et al., 2004).
Nesse sentido, para implementar uma tecnologia social é necessário conhecer a realidade e problemas das diferentes populações, assim teremos uma tecnologia social pensada para aquela população. Assim, este trabalho busca discorrer sobre um conjunto de estratégias estabelecidas a partir do “Projeto e-COO”, cujo intuito foi implementar ações para minimizar a situação de insegurança alimentar. As ações que serão relatadas neste texto abrangem a auto-organização dos agricultores familiares, a distribuição de cestas básicas para agricultores familiares e a coleta de informações para traçar um perfil preliminar da agricultura familiar do município do Rio Grande.
Metodologia
Área de estudo
A área de estudo compreende o município do Rio Grande, localizado na Planície Costeira do extremo sul do Rio Grande do Sul. O município situa-se entre a Lagoa Mirim, Canal São Gonçalo, Laguna dos Patos e o Oceano Atlântico. O estuário da Lagoa dos Patos possui descargas de água doce de diversos corpos hídricos, entre eles o Rio Guaíba. Essa posição geográfica torna o município vulnerável a inundações, especialmente durante períodos de chuvas intensas, agravadas pelos eventos climáticos extremos.
Distribuição das cestas básicas para agricultores familiares e aplicação dos questionários
No dia 31 de maio, o então ministro da Reconstrução, Paulo Pimenta, esteve em agenda oficial nas cidades de Rio Grande e Pelotas para ouvir as demandas das populações afetadas pela catástrofe climática que devastou o estado do Rio Grande do Sul.
Durante a visita, o ministro conheceu os abrigos montados na FURG. Em seguida, participou de uma Audiência Pública, na qual foi entregue uma carta contendo as principais solicitações do grupo de autogestão de agricultores familiares, elaborada com a mediação do projeto e-COO.
Uma das solicitações atendidas foram distribuição de 250 cestas básicas para agricultores familiares impactados pela enchente. Os critérios para a distribuição foram definidos com base em dados fornecidos pela EMATER, SENAR e pelos próprios agricultores familiares, o que permitiu a identificação precisa das famílias e suas respectivas localidades.
A distribuição das cestas ocorreram no período de julho a setembro de 2024. As visitas para entrega ocorreram nas propriedades e contaram com auxílio dos produtores do grupo de autogestão, que ajudaram a identificar os agricultores familiares, permitindo assim uma melhor identificação dessa comunidade. O método utilizado foi a amostragem de bola de neve, na ocasião foi aplicado um questionário semi estruturado com 22 questões.
Resultados e discussão da distribuição de cestas para agricultores familiares
A experiência indicou a importância da participação dos agricultores familiares em todo o processo de organização, reivindicação, assistência e produção de informações. Os dados coletados a partir das entrevistas ultrapassaram a habitual desconfiança, aproximando o projeto de muitos lugares e agricultores em que “só a universidade chegou até aqui (sic)”. Esta foi uma superação de um dos maiores desafios para pesquisas com comunidades tradicionais, incluir os atores como parte em todo o processo.
Dessa forma, foram aplicados 174 questionários e distribuídas cerca de 250 cestas básicas às famílias de agricultores familiares. As localidades contempladas foram Arraial, Banhado Silveira, Barra Falsa, Bolaxa, Capão Seco, Ilha da Torotama, Ilha do Leonídio, Ilha dos Marinheiros, Palma, Pesqueiro, Povo Novo, Quinta, Quitéria e Senandes. Sendo que a localidade com maior número de agricultores cadastrados foi a Ilha do Leonídio com 54 agricultores (31%), seguido da Ilha dos Marinheiros, com 35 (20%) e Quitéria com 21 (12%). Essas localidades com maior número de agricultores foram fortemente atingidas pela enchente.
A primeira dificuldade experienciada foi em relação aos dados sobre os agricultores. Esses dados encontravam-se desatualizados, muitos nomes da lista não exerciam mais a atividade, e alguns haviam falecido. Como o município não conta com sindicatos e cooperativas operantes, esses dados não se encontram em domínio público. O auxílio dos agricultores familiares na validação das listas foi de extrema importância.
A logística da distribuição das cestas básicas para agricultores familiares foi um dos maiores desafios enfrentados, devido às condições das estradas rurais. Algumas dessas vias ainda se encontravam parcialmente alagadas e com dificuldade de acesso, por causa disso foi necessário o uso de veículo 4×4.
Dessa forma, a equipe pode experimentar as dificuldades vivenciadas pelos próprios agricultores familiares em se deslocar. Destacamos o caso dos agricultores moradores da Ilha do Marinheiros, onde a ponte que dá acesso à ilha sofreu danos estruturais devido a enchente e está interditada desde de junho. De forma alternativa, foi disponibilizada uma balsa para o transporte de pessoas e cargas, mas com horários restritos e que não acompanhavam a realidade e rotina dos moradores. A obra está prevista para durar seis meses.
Dos 174 agricultores entrevistados, 69% (127) possuem Cadastro na Agricultura Familiar, o CAF, e 31% não possuem (54). No momento em que foi questionado sobre o CAF, a maioria não sabia do que se tratava. Apesar do número expressivo de agricultores que o possuem, alguns agricultores relataram que o CAF estava desatualizado. Por esses dois motivos, acreditamos que o CAF não seja o melhor indicador quando se fala em agricultura familiar. A maioria dos entrevistados são do sexo masculino, 84% (147) e 15% são do sexo feminino (27). Em relação ao estado civil, 50% são casados (88); 9% divorciados (16); 29% solteiros (52); 5% união estável e viúvo (9).
De acordo com a faixa etária, observamos que os filhos dos agricultores não estão permanecendo no campo. Essa ideia já vinha sendo discutida, e os dados do campo corroboram, visto que apenas 9% têm entre 20-39 anos de idade. A faixa etária mais expressiva foi a de 40-59 anos, representando 48% da amostra. Notamos ainda que muitos agricultores já são aposentados, mas que complementam a renda com a agricultura.
Apesar de relatarem que recebem assistência técnica da Emater e Senar (78 e 27 relatos, respectivamente), os desafios enfrentados por essa comunidade são muitos. Tivemos a sensação que eles estão abandonados, muitos não aguentam mais ter que plantar e perder tudo, pensam em desistir. Os eventos de fortes chuvas e enchentes são recorrentes, de forma que os agricultores familiares têm que “se virar” como podem. Apenas um agricultor relatou que recebe assistência técnica da Secretaria de Agricultura do município.
A entrega das cestas básicas para agricultores familiares começou um mês após o início do escoamento das águas, e ainda assim o cenário nas plantações era de alagamento. Grande parte das residências visitadas ainda estavam com os canteiros alagados, úmidos e em alguns casos com a presença de limo devido a alta umidade do solo, principalmente na Ilha dos Marinheiros. Outra parte estava começando a arar os terrenos para receber a próxima safra (Ilha do Leonídio), e poucos tinham começado o replantio (Ilha do Leonídio e Quitéria).
Grande parte dos agricultores entrevistados, cerca de 84%, tiveram 100% da sua propriedade afetada pela enchente e fortes chuvas. A maioria teve que sair de sua residência, mas alguns decidiram permanecer por medo de serem furtados. Quatro agricultores relataram que não perderam sua produção, pois já haviam colhido. Ainda assim foi possível perceber que o solo estava com blocos de lodo trazidos pela enchente, com um odor ruim muito forte, e que provavelmente o solo estava pobre em nutrientes. O que nos permite compreender que a recuperação e replantio envolverá muitos processos e tempo para retornar ao estado de produção.
Considerações finais da distribuição de cestas básicas para agricultores familiares
O município de Rio Grande frequentemente registra impactos negativos devido às chuvas fortes e alagamentos, mas com os efeitos das mudanças climáticas esses eventos extremos se tornam cada vez mais frequentes. Logo, é importante pensar em políticas públicas voltadas à prevenção de enchentes, instrução aos cidadãos e à recuperação pós-desastre.
Atualizar e disponibilizar informações sobre os agricultores familiares em uma única plataforma pode ser uma estratégia para valorizar o pequeno produtor e fortalecer o setor no enfrentamento aos eventos climáticos extremos, já que além de estarem em áreas de maior vulnerabilidade ambiental e social, é a classe que resguarda a alimentação de qualidade da população local.
A experiência vivenciada pela equipe evidenciou a importância de um planejamento a longo prazo para agricultores familiares em situação de vulnerabilidade climática. A área rural sofreu severamente, resultando em plantações comprometidas e ampliando a vulnerabilidade social e econômica dessas comunidades.
O protagonismo dos agricultores, desde o envolvimento na reunião com o ministro Paulo Pimenta até a participação na distribuição das cestas básicas para os agricultores familiares evidenciou a importância dos processos de autogestão, pois sem eles, não teríamos chegado a muitas propriedades rurais. Em suma, a entrega de 250 cestas básicas foi uma resposta imediata de solidariedade, destinada a mitigar a insegurança alimentar provocada pela enchente, demonstrando o compromisso das pesquisas sociais com as comunidades com as quais mantém relações de reciprocidade.
Como próximos passos, o grupo de agricultores juntamente com o Projeto e-COO está se organizando, através do Plano de Aquisição de Alimentos (PAA), para receber e distribuir as sementes também solicitadas na carta, com o objetivo de assegurar a diversidade e a resiliência das culturas agrícolas.
Referências bibliográficas
DAGNINO, R; BRANDÃO, F; NOVAES, H. Sobre o marco analítico-conceitual da Tecnologia Social. Tecnologia Social, uma estratégia para o desenvolvimento. [s.l.]: Fundação Banco do Brasil, p. 15-64, 2004. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5825357/mod_resource/content/1/Sobre%20o%20marco%20anal%C3%ADtico-conceitual%20da%20tecnologia%20social.pdf
Autores: Elisa Stuani Dosso, Júlia Nyland do Amaral Ribeiro, Raizza da Costa Lopes, Giovanna Soares, Lucia Nobre, Viviani Kwecko.
Artigo originalmente publicado no 2º Simpósio Brasileiro de Ensino, Pesquisa e Extensão em Tecnologia Social (SEPETS)