inteligência artificial e cooperativismo de plataforma

Resenha: Cooperativa de inteligência artificial READ-COOP

Cooperativismo de plataforma e inteligência artificial podem operar juntos? Refletir sobre essa pergunta ainda representa um desafio, já que estamos nos estágios iniciais tanto em desenvolvimento de projetos quanto de produção científica. Apesar disso, algumas experiências pioneiras já nos oferecem pistas sobre como essa intersecção pode funcionar na prática.

Entre essas iniciativas, destaca-se a rede AI4Coops, organizada pela Federação Argentina de Cooperativas de Tecnologia (FACTTIC), que tem apoiado cooperativas na adoção de novas tecnologias, incluindo inteligência artificial, a partir de um propósito social. Outra referência importante é a READ-COOP, uma Sociedade Cooperativa Europeia (SCE) fundada em 2019, que deu origem à Transkribus, que atua na transcrição automática de documentos históricos e se consolidou como uma experiência concreta de infraestrutura cooperativa voltada à IA.

Para aprofundar esse debate e preencher algumas das lacunas, pesquisadores envolvidos na criação da READ-COOP publicaram o artigo A cooperativa de inteligência artificial: READ-COOP, Transkribus e os benefícios da infraestrutura comunitária compartilhada para reconhecimento automatizado de texto (tradução nossa). A partir dessa experiência, é possível analisar o cooperativismo de plataforma aplicado ao desenvolvimento ético e democrático da inteligência artificial.

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O que é cooperativismo de plataforma?

O cooperativismo de plataforma configura-se como uma alternativa organizacional no ecossistema digital, baseada na propriedade coletiva, na governança democrática e na geração de valor orientada ao interesse público.

Diferentemente das corporações convencionais, cujo modelo de negócios é orientado pela maximização do lucro e pela extração de dados e valor das comunidades usuárias, as cooperativas de plataforma propõem formas de organização mais justas e participativas, tanto do ponto de vista econômico quanto sociotécnico.

Esse modelo é particularmente relevante diante do cenário de concentração de poder nas mãos de grandes empresas de tecnologia, que frequentemente operam sob lógicas extrativistas e opacas, com pouca ou nenhuma responsabilização pública.

As cooperativas de plataforma, ao contrário, promovem a visibilidade dos processos de produção, incentivam o envolvimento direto das pessoas que desenvolvem e utilizam a tecnologia e asseguram que os benefícios sejam distribuídos de maneira equitativa entre seus membros. Nesse sentido, elas não apenas desafiam a hegemonia das grandes plataformas privadas, mas também oferecem estruturas institucionais capazes de sustentar tecnologias digitais orientadas pelo bem comum.

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Inteligência artificial e domínio corporativo

Atualmente, a infraestrutura de inteligência artificial é amplamente dominada por grandes corporações, cujo modelo de desenvolvimento tecnológico está fundamentado na lógica do lucro e na eliminação progressiva da mediação humana nos processos produtivos. Essa orientação estratégica, típica do capitalismo de plataformas, tende a aprofundar desigualdades sociais e a comprometer princípios éticos fundamentais. Como destacam os debates contemporâneos sobre governança digital, os principais riscos associados a esse modelo incluem:

  • Coleta e uso de dados pessoais sem consentimento informado;
  • Crescente concentração de poder técnico e econômico em um número restrito de empresas; e
  • Enfraquecimento da autonomia e dos direitos dos trabalhadores envolvidos direta ou indiretamente nesses sistemas.

A opacidade que marca o desenvolvimento e a operação desses sistemas contribui para a invisibilização de seus impactos negativos, que muitas vezes só se tornam evidentes quando já causaram danos concretos a indivíduos, comunidades ou setores inteiros da economia. Essa defasagem entre o desenvolvimento da tecnologia e a capacidade de regulação ou resistência por parte das comunidades afetadas evidencia a urgência de pensar modelos alternativos de produção, gestão e uso da inteligência artificial.

Diante desse cenário, torna-se imprescindível considerar formas de governança que descentralizem o controle sobre os sistemas de IA e priorizem o interesse público. O cooperativismo de plataforma, nesse contexto, emerge como uma proposta promissora para a construção de tecnologias mais transparentes, auditáveis e socialmente responsáveis, ancoradas em princípios de participação democrática, distribuição equitativa de benefícios e respeito aos direitos fundamentais das pessoas envolvidas.

Cooperativas de plataforma: ruptura para aplicação de inteligência artificial

As cooperativas de plataforma configuram uma alternativa crítica ao modelo hegemônico de desenvolvimento e aplicação de sistemas de inteligência artificial, oferecendo uma abordagem fundamentada em valores como solidariedade, justiça distributiva e participação democrática.

Ao contrário das corporações privadas, cujo foco recai sobre a maximização de lucros e a expansão monopolista, as cooperativas orientam-se pelo interesse coletivo, propondo formas colaborativas de governança e produção tecnológica.

No campo específico da inteligência artificial, essa abordagem implica uma reconfiguração dos modos de concepção, gestão e uso dessas tecnologias.

As cooperativas propõem, por exemplo, estruturas que permitam o controle compartilhado dos dados, o envolvimento direto das comunidades usuárias nos processos decisórios e a construção de soluções tecnológicas ancoradas nas necessidades concretas das populações atendidas. Essa lógica rompe com a dinâmica extrativista e opaca predominante no setor, abrindo espaço para práticas de inovação ética e socialmente responsável.

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Experiência da READ-COOP e a plataforma Transkribus

A experiência da READ-COOP e da plataforma Transkribus representa um modelo singular de sustentabilidade técnica e governança democrática no campo da inteligência artificial aplicada ao patrimônio documental. Fruto de um esforço colaborativo inicialmente financiado por programas da Comissão Europeia, a Transkribus foi concebida entre 2013 e 2019 por meio dos projetos TranScriptorium e READ (Recognition and Enrichment of Archival Documents), com o objetivo de desenvolver um sistema capaz de realizar o reconhecimento automático de textos manuscritos e impressos em larga escala.

A plataforma consolidou-se rapidamente como uma das principais ferramentas de Handwritten Text Recognition (HTR), combinando técnicas de aprendizado de máquina com um fluxo de trabalho acessível a usuários de diferentes perfis, especialmente no setor de humanidades digitais.

Com o encerramento do financiamento público, a continuidade da plataforma impôs uma questão estratégica: como manter, desenvolver e governar de forma ética uma infraestrutura de inteligência artificial que já contava com uma base significativa de usuários e dados? A resposta foi a fundação da READ-COOP, em julho de 2019, como uma Sociedade Cooperativa Europeia (SCE). Essa decisão marcou um ponto de inflexão importante no debate sobre a sustentabilidade de tecnologias digitais de interesse público.

A cooperativa foi formada por membros institucionais e individuais oriundos de diferentes países europeus, sob um modelo jurídico que combina operação comercial com princípios de propriedade coletiva e reinvestimento integral dos lucros em sua própria infraestrutura.

A Transkribus, sob gestão da READ-COOP, expandiu-se rapidamente. Até outubro de 2024, a cooperativa contava com 227 membros de 30 países e mais de 235 mil usuários registrados, tendo processado aproximadamente 90 milhões de imagens de textos históricos.

A plataforma permite não apenas o uso de modelos públicos de reconhecimento de texto, mas também o treinamento de modelos personalizados com base em redes neurais, adaptando-se a estilos específicos de caligrafia ou layouts complexos.

O ambiente cooperativo tem se mostrado favorável à inovação contínua, com melhorias constantes nos índices de acurácia (CER – Character Error Rate) e no desenvolvimento de novos módulos, como sistemas de indexação, visualização e anotação colaborativa de documentos históricos.

Do ponto de vista organizacional, a READ-COOP constitui uma rara exceção no panorama global de desenvolvimento de IA, em que predominam modelos corporativos orientados à maximização de lucros e à concentração de poder. Ao adotar uma estrutura cooperativa, a Transkribus mantém a transparência sobre seus algoritmos e processos de decisão, promove o engajamento da comunidade usuária na definição de prioridades técnicas e assegura que os benefícios econômicos retornem diretamente aos que fazem uso da plataforma.

Mais do que uma solução técnica para o problema da transcrição automatizada, a experiência da READ-COOP oferece um paradigma alternativo de inovação tecnológica: um modelo baseado em corresponsabilidade, abertura e compromisso com o bem comum.

Essa experiência desafia as narrativas dominantes sobre a inevitabilidade da monopolização das tecnologias digitais e aponta para a viabilidade de infraestruturas de IA construídas e mantidas coletivamente. Ao articular os princípios do cooperativismo com os avanços da inteligência artificial, a READ-COOP demonstra que é possível alinhar inovação, sustentabilidade e democracia no desenvolvimento de plataformas digitais críticas à preservação e ao acesso ao patrimônio cultural.

Modelo conceitual cooperativista para o desenvolvimento de inteligência artificial

O modelo de desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial adotado pela READ-COOP constitui uma contribuição relevante para o debate sobre a construção de infraestruturas digitais orientadas por valores democráticos, cooperativos e socialmente responsáveis. A partir da experiência com a plataforma Transkribus, a READ-COOP articula seu modelo conceitual em torno de quatro pilares centrais que refletem os princípios do cooperativismo, ao mesmo tempo em que dialogam com os marcos éticos contemporâneos da chamada “inteligência artificial responsável”:

Necessidades dos usuários

A inteligência artificial, segundo esse modelo, deve responder a problemas concretos e específicos, alinhando-se às demandas reais da comunidade que a utiliza.

Comunidade ampla e diversa

Formada por membros com distintos perfis institucionais, profissionais e geográficos, mas articulados por objetivos comuns e por uma ética compartilhada de colaboração e transparência.

Capacidade de auto-organização da comunidade

A sustentabilidade do projeto requer estruturas institucionais que favoreçam a governança democrática, com regras claras, participação ativa dos membros e mecanismos de reinvestimento coletivo dos recursos obtidos.

Solução tecnológica útil e funcional

Orientada por critérios de eficiência, usabilidade e impacto social positivo.

Referência:

Terras M, Anzinger B, Gooding P et al. The artificial intelligence cooperative: READ-COOP, Transkribus, and the benefits of shared community infrastructure for automated text recognition [version 1; peer review: 1 approved with reservations, 1 not approved]. Open Res Europe 2025, 5:16 (https://doi.org/10.12688/openreseurope.18747.1)