Introdução
Nas últimas décadas, o conceito de tecnologia social tem ganhado crescente relevância nas discussões sobre inovação e desenvolvimento. Especialmente nos contextos das políticas públicas, dos movimentos sociais e das iniciativas vinculadas à economia solidária. Ao contrário de abordagens técnicas convencionais, a tecnologia social inaugura um paradigma alternativo: trata-se de uma forma de produção e apropriação do conhecimento técnico-científico baseada no diálogo com comunidades, orientada pela transformação social e ancorada em princípios ético-políticos. Segundo o Instituto de Tecnologia Social (ITS), a tecnologia social é definida como um conjunto de técnicas e metodologias desenvolvidas e/ou aplicadas em diálogo com comunidades, visando à promoção de transformações sociais concretas. Essa definição enfatiza tanto os resultados quanto os processos participativos, situados e coletivos que a caracterizam.
Tecnologia Social e Economia Solidária
Nesse mesmo horizonte, Dagnino (2014) aprofunda o debate ao afirmar que a tecnologia social não se limita a soluções alternativas ou de baixo custo. Ela representa um modo de produção tecnológica construído a partir da participação ativa dos sujeitos sociais. Reconhecendo os saberes populares como fontes legítimas de conhecimento e propõe a construção coletiva de soluções contextualizadas. Essa concepção rompe com a lógica dominante que separa o conhecimento técnico do saber popular. Propondo uma prática dialógica e transformadora que articula ciência, técnica e vida cotidiana como partes indissociáveis de um mesmo processo de emancipação.
Um dos pilares centrais da tecnologia social é sua profunda articulação com os valores da economia solidária e da autogestão. Como afirma Singer (2002), a economia solidária configura-se como um movimento social e econômico no qual os próprios trabalhadores se organizam e gerem coletivamente a produção, distribuição e os resultados do seu trabalho. Nesse sentido, a tecnologia social é um instrumento estratégico para o fortalecimento de empreendimentos solidários. Fornecendo suporte metodológico e técnico compatível com seus princípios: cooperação, inclusão, respeito à diversidade e justiça social.
Contudo, muitos empreendimentos da economia solidária, em especial os ligados à agricultura familiar, enfrentam obstáculos estruturais relacionados à escassez de tecnologias adequadas às suas realidades socioprodutivas. Como observa Dagnino (2004; 2019), a maior parte das tecnologias convencionais segue orientações voltadas à maximização do lucro, à eficiência produtivista e à competitividade, desconsiderando os contextos culturais, as práticas colaborativas e as necessidades das populações locais. Nesse cenário, a tecnologia social emerge como alternativa contra-hegemônica, capaz de impulsionar processos de inovação mais justos, cooperativos e territorialmente ancorados.
Projeto e-COO
É neste contexto que se insere o projeto e-COO: Cooperativismo de Plataforma para o fortalecimento da Agricultura Familiar. O projeto propõe uma inovação tecnológica e social voltada para a construção de uma infraestrutura cooperativa digital. Inspirado pelos princípios da economia solidária, da autogestão e da soberania tecnológica, o projeto visa desenvolver plataformas digitais democráticas capazes de apoiar a comercialização, logística e organização produtiva de agricultores familiares e pescadores artesanais. Sua proposta rompe com os modelos tradicionais de plataformas digitais, frequentemente baseados na lógica privada. Inaugura um modelo de governança cooperativa e democrática, no qual os próprios trabalhadores tornam-se co-proprietários e gestores das plataformas.
A partir dessa arquitetura democrática, o e-COO oferece um conjunto de funcionalidades integradas: catálogo digital de produtos, organização de pedidos, gestão financeira, logística colaborativa e mediação de consumo e produção, sempre sob controle coletivo e transparente. Além da tecnologia em si, o projeto compreende um processo contínuo de formação política e técnica, que valoriza os saberes dos sujeitos envolvidos, promove o aprendizado mútuo e consolida uma prática pedagógica e emancipadora.
O e-COO também se conecta às discussões contemporâneas sobre a chamada Economia Solidária 2.0, conceito trabalhado por Alvear et al. (2023), que reivindica uma reapropriação crítica das tecnologias digitais a partir dos valores da solidariedade, da cooperação e da justiça social. Essa abordagem enfatiza o desenvolvimento de plataformas baseadas em propriedade coletiva, transparência algorítmica e democracia interna, constituindo-se como resistência ao modelo hegemônico do capitalismo de plataforma.
Cooperativismo de Plataforma
Nesse campo, o termo cooperativismo de plataforma, criado por Trebor Scholz (2016), surge como resposta à precarização promovida pelas grandes corporações tecnológicas. Em oposição à lógica de exploração presente nas plataformas tradicionais, o cooperativismo de plataforma defende a criação de ambientes digitais geridos coletivamente pelos próprios trabalhadores, com remuneração justa, proteção social e condições dignas de trabalho. No Brasil, existem experiências inspiradoras nesse campo, como a plataforma Contrate Quem Luta, desenvolvida pelo MTST, ou as cooperativas de entregadores Señoritas Courrier e PedalExpress, que operam sob princípios de solidariedade e autogestão. O projeto e-COO articula-se a esse ecossistema inovador ao buscar soluções específicas para a comercialização da produção agroecológica, reconhecendo que a maioria dos agricultores familiares da região está na faixa etária entre 45 e 75 anos, o que exige designs tecnológicos acessíveis, inclusivos e intuitivos.
Ao longo do processo, o e-COO realizou oficinas, escutas e aplicações de questionários para identificar as demandas e potencialidades dos públicos envolvidos, tanto agricultores quanto consumidores. Promovendo uma escuta ativa e qualificada, capaz de desenvolver a plataforma e qualificar o espaço físico: o Armazém e-COO. O armazém está localizado na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), ponto de articulação logística e de integração territorial.
Portanto, mais do que uma ferramenta tecnológica, o e-COO representa uma estratégia político-pedagógica de transformação social. Ao colocar as tecnologias digitais a serviço da vida, do território e da coletividade, o projeto reafirma a potência da tecnologia social e do cooperativismo de plataforma como caminhos para a construção de novos futuros sustentáveis, protagonizados pelas comunidades que historicamente estiveram à margem dos processos de inovação.
Armazém e-COO
O Armazém e-COO é mais do que um ponto de recebimento, separação e distribuição de produtos da agricultura familiar da região imediata de Pelotas, o Armazém se constitui como um entreposto estratégico, onde as dimensões logísticas e comerciais se articulam às práticas educativas e políticas do projeto. Neste espaço social e formativo, ocorrem não apenas as operações ligadas ao escoamento da produção, mas também ações de formação continuada em cooperativismo, economia solidária e tecnologias sociais, voltadas aos agricultores e agricultoras integrantes do projeto e-COO. Trata-se, portanto, de um ambiente multifuncional que congrega atividades práticas e pedagógicas, sustentado por uma equipe interdisciplinar que inclui profissionais das áreas de tecnologia, comunicação, ciências sociais e ciências sociais e aplicadas.
Diante da importância estratégica do Armazém nas ações do Projeto e-COO, este trabalho tem como objetivo apresentar e discutir alguns dos resultados parciais da iniciativa, com ênfase na construção e consolidação de seu espaço físico: o Armazém e-COO. Para subsidiar essas análises, foram aplicados questionários semi estruturados junto a produtores da agricultura familiar e consumidores, utilizando a metodologia bola de neve. O Armazém desempenha papel central na consolidação do cooperativismo de plataforma como estratégia de fortalecimento da agricultura familiar, promovendo autonomia, aprendizado coletivo e desenvolvimento territorial. As informações coletadas permitiram a construção de indicadores sociais que orientaram tanto o desenvolvimento quanto o aprimoramento da plataforma digital. Foi a partir dessa escuta qualificada que surgiu a necessidade de criar um espaço presencial para comercialização e troca de saberes, fortalecendo os vínculos entre campo e cidade.
Armazém e-COO: Entreposto Logístico, Espaço Formativo e Estratégia de Justiça Territorial
A caracterização social dos participantes, obtida a partir de 25 respostas ao questionário online aplicado na fase inicial de escuta ativa do projeto, revela um perfil diverso, mas com traços comuns. Vale destacar que, o instrumento foi aplicado por meio da metodologia bola de neve e oferece um recorte parcial da realidade da agricultura familiar no município do Rio Grande. Os dados indicam uma distribuição etária equilibrada: 44% dos respondentes têm entre 20 e 39 anos e outros 44% entre 40 e 59 anos, enquanto apenas 12% têm mais de 60 anos. Esse perfil revela a presença expressiva de agricultores em idade produtiva, destacando a importância de estratégias que integrem tradição e inovação para garantir sua permanência no campo.
Gênero e raça
Do ponto de vista de gênero e raça, observa-se que 60% dos respondentes são mulheres e 40% homens, o que evidencia o protagonismo feminino nas práticas de cultivo e organização produtiva da agricultura familiar. Quanto à autodeclaração racial, a maioria (88%) se reconhece como branca, 8% como parda e 4% não se identifica com nenhuma das categorias disponíveis (branca, preta, parda, amarela ou indígena), sinalizando a necessidade de aprimorar instrumentos de escuta que considerem a diversidade étnico-racial de forma mais inclusiva e crítica.
Renda
A análise da renda mensal dos agricultores entrevistados revela um cenário de grande heterogeneidade e vulnerabilidade socioeconômica. Do total de respondentes, 28% declararam receber entre 1 e 2 salários mínimos; 20% vivem com até ½ salário mínimo; 16% têm rendimentos mensais entre 2 a 5 e 5 a 10 salários mínimos; enquanto 8% afirmaram receber acima de 10 salários mínimos ou não souberam informar sua renda. Essa variação reflete as desigualdades internas no segmento da agricultura familiar e, ao mesmo tempo, aponta para a fragilidade de parte significativa dos produtores quanto à sustentabilidade econômica de suas atividades. Esse dado se conecta diretamente com a percepção de futuro expressa na pesquisa. Quando questionados sobre as perspectivas em relação ao trabalho, 44% responderam que consideram o futuro incerto, afirmando não saber se será possível manter o sustento da família com o trabalho atual.
Tal resposta escancara a insegurança vivida por muitos agricultores e reforça a urgência de políticas públicas e iniciativas que promovam a valorização e o fortalecimento da agricultura familiar local. Isso inclui o acesso a tecnologias sociais, apoio técnico, infraestrutura de comercialização e mecanismos de proteção social que garantam condições dignas de vida e permanência no campo.
Formas de comercialização
A maioria dos produtores entrevistados afirmou comercializar seus produtos principalmente em feiras (56%), seguida da venda direta em suas propriedades rurais (52%). Esse resultado era esperado, uma vez que os dados foram coletados entre agricultores que já participam de feiras. Ainda assim, chama atenção o fato de que 32% dos produtores relataram também vender por meio de atravessadores.
Essa forma de comercialização, embora seja uma alternativa para quem enfrenta dificuldades logísticas, como a impossibilidade de levar os produtos até os pontos de venda, os torna dependentes de intermediários. Esses agentes adquirem os produtos diretamente nas propriedades, pagando valores reduzidos e revendendo-os por preços significativamente mais altos, muitas vezes o dobro do valor pago ao produtor, precarizando o trabalho do campo. Um exemplo dessa realidade é a região da Barra Falsa, localizada no interior do município do Rio Grande.
Região dos 25 centavos
Durante anos, a localidade de Barra Falsa ficou conhecida como a “região dos 25 centavos”, em alusão ao valor irrisório pago por intermediários por qualquer produto agrícola, posteriormente revendidos por preços definidos arbitrariamente por eles. Esse relato foi compartilhado por Cledenir Vergara Mendonça, historiador, guardião de sementes crioulas e escritor da cidade de Rio Grande, e evidencia a histórica desigualdade nas relações de comercialização que afetam os agricultores familiares da região.
Nesse contexto, a plataforma e-COO surge como uma ferramenta estratégica para enfrentar essa realidade, ao promover a comercialização direta entre agricultores e consumidores. Por meio da tecnologia social e da lógica do cooperativismo de plataforma, o projeto busca fortalecer a autonomia dos produtores, eliminar a figura do atravessador e garantir uma remuneração justa, contribuindo para a valorização do trabalho no campo e o fortalecimento do cooperativismo entre agricultores e a economia solidária.
Educando o consumidor
O Armazém e-COO tem se consolidado não apenas como um entreposto logístico, mas como um espaço formativo e de mediação crítica entre campo e cidade. Ao promover a aproximação entre consumidores e a realidade concreta dos agricultores familiares, seus modos de vida, desafios e estratégias de resistência, o Armazém provoca deslocamentos nas formas de perceber e praticar o consumo. Essa convivência cotidiana gera um processo educativo potente, no qual o ato de consumir deixa de ser apenas uma transação comercial para se tornar uma escolha política, ética e cultural.
Nesse sentido, foi aplicado um questionário com consumidores da Feira do Produtor do bairro Cassino, no município do Rio Grande, que resultou em 108 respostas. A maior parte dos respondentes se identifica como do sexo feminino (62,8%) e branca (89,6%), com faixa etária concentrada entre 40 e 59 anos (45,8%), seguida por pessoas entre 20 e 39 anos (38,3%). A escolaridade é elevada: 67,3% possuem algum tipo de pós-graduação, o que evidencia um público com acesso privilegiado à informação e capital cultural.
Não basta ao agricultor construir alternativas de comercialização se o ato de comprar e vender depende, essencialmente, de uma relação de reconhecimento e corresponsabilidade por parte do consumidor. Em especial nas feiras locais, marcadas por produções de pequena escala e pela oferta de produtos agroecológicos ou orgânicos, torna-se urgente também a formação do consumidor: é preciso compreender o valor da chamada “fruta feia”, o significado de alimentos sazonais e os ciclos próprios da produção camponesa.
Hábitos de consumo
Quanto aos hábitos de consumo, observou-se que 39,8% consomem alimentos agroecológicos com frequência (às vezes ou muitas vezes), e 58,3% frequentam a feira semanalmente, com gasto médio entre 51 e 100 reais por compra (59,8%). Apesar do perfil engajado, o acesso aos produtos ainda é percebido como limitado: 64,8% consideram o acesso “razoável” e 22,2% o classificam como “ruim”. A maioria (70,4%) demonstrou interesse em adquirir esses produtos por meio de aplicativos de mensageria, indicando abertura ao uso de tecnologias digitais para o consumo responsável.
Esses dados evidenciam um público consumidor com características específicas: escolaridade alta, maior poder aquisitivo e familiaridade com tecnologias. A feira do Cassino, onde a pesquisa foi realizada, é uma das poucas no município que oferta produtos orgânicos, dentre os produtores a maioria é da agricultura familiar e vende o que produz, além de estar situada em uma área valorizada da cidade. Em contraste, feiras nos bairros periféricos tendem a oferecer produtos oriundos de outras regiões ou estados, o que aponta desigualdades no acesso à produção local e saudável e a presença de atravessadores.
Como defende Layrargues (2006), uma educação ambiental comprometida com a justiça social não pode limitar-se à preocupação com a preservação ecológica: ela deve enfrentar os mecanismos de padronização cultural, de exclusão social e os conflitos socioambientais que perpassam as práticas produtivas e o cotidiano das populações do campo. É nesse sentido que o Armazém e-COO se afirma como um território educativo e de disputa simbólica, contribuindo para reconfigurar as relações entre produção e consumo a partir de princípios solidários e sustentáveis.
O tipo de plataforma que queremos
Com base nesses achados, o projeto e-COO tem investido em uma plataforma digital acessível, com interface intuitiva, pensada para ampliar o alcance dos produtos da agricultura familiar para diferentes públicos, inclusive aqueles com menor letramento digital. O objetivo é democratizar o acesso ao consumo agroecológico e fortalecer os laços entre quem produz e quem consome, contribuindo para uma economia mais solidária, territorializada e inclusiva.
A trajetória do Armazém e-COO se entrelaça também com os impactos socioambientais da crise climática. Desde o início do projeto, os agricultores sofreram com dois ciclones, chuvas de granizo e uma enchente devastadora. Nos meses de abril e maio de 2024, inundações atingiram mais de 470 municípios gaúchos. Cidades como Pelotas, Rio Grande e São José do Norte foram duramente impactadas pelo avanço da Lagoa dos Patos, afetando profundamente a agricultura familiar e a pesca artesanal. Nesse contexto, o Armazém se tornou também um ponto de articulação de solidariedade: agricultores e equipe organizaram a distribuição de cestas básicas e participaram de ações emergenciais para mitigar os efeitos da tragédia, reforçando o papel da agricultura familiar na segurança alimentar e no cuidado com o território.
Entrega de cestas básicas
Na ocasião da entrega das cestas básicas, foi aplicado um questionário com o objetivo de cadastrar os agricultores para uma futura distribuição de sementes enviadas pelo governo federal. Analisando as 174 respostas, uma questão em específico chamou atenção da equipe, 54 agricultores (31%) entrevistados não possuíam o Cadastro da Agricultura Familiar (CAF), ao passo que todos (100%) possuíam Talão do Produtor. Diante desses dados, e após discussão com a equipe, conclui-se que o CAF não seria um indicador mais adequado para identificar e cadastrar agricultores na Plataforma e-COO, já que a ausência não implica necessariamente, a não atuação como agricultor familiar. Por outro lado, o talão do produtor se mostrou um indicador mais abrangente e fidedigno da atividade produtiva.
Além disso, a experiência do campo possibilitou às pesquisadoras verificar outra realidade: os dados sobre o número de unidades familiares de agricultores são, na prática, menores do que os indicados quando se considera apenas os indivíduos. Essa constatação reforça a importância de abordagens que valorizem o conhecimento situado e a vivência direta nos territórios, revelando aspectos inviabilizados pelas estatísticas oficiais.
Nesse sentido, afirma-se novamente, o Armazém e-COO não é apenas um local de venda de produtos. Ele representa uma infraestrutura social, pedagógica e logística, onde se cruzam lutas por justiça climática, inclusão produtiva, fortalecimento territorial e transformação socioambiental. Ao colocar em diálogo o conhecimento empírico do campo com os recursos acadêmicos da universidade, o projeto fortalece o cooperativismo de plataforma como ferramenta concreta de enfrentamento às desigualdades e promoção de futuros sustentáveis.
Tecnologia em diálogo: participação, uso e desafios no processo de aprendizagem digital
Com base nos dados levantados junto aos agricultores familiares e consumidores, foi possível realizar uma análise qualitativa e quantitativa que embasou decisões estratégicas para o desenvolvimento da plataforma digital e-COO.
Questionário com os agricultores familiares
No caso dos agricultores, os primeiros questionários, identificaram que 44% dos participantes tinham entre 20 e 39 anos, enquanto apenas 12% tinham mais de 60 anos. Já no questionário aplicado durante a entrega das cestas básicas, observou-se presença reduzida de jovens (9%) e aumento da participação de pessoas acima dos 60 anos (26%). Em ambos os questionários, o perfil etário é concentrado entre 40 e 59 anos.
Esses dados, mesmo representando recortes distintos da realidade da agricultura familiar, foram fundamentais para orientar decisões de design e de dinâmica na interface da plataforma. Foi observado em campo que alguns agricultores têm filhos adolescentes ou recém adultos que não tem pretensão de seguir no campo, há portanto a proposta de que os jovens da família possam fazer parte da comercialização dos alimentos através da plataforma digital, trazendo esse sujeito como protagonista não apenas do processo de venda desses alimentos, mas também compreendendo todo o ciclo da cadeia produtiva, instigando a continuação do trabalho no campo. Além disso, observaram-se altos índices de vulnerabilidade socioeconômica, com renda variada, perspectivas incertas sobre a continuidade da atividade agrícola e formas precárias de comercialização. Essas informações reforçaram a necessidade de uma ferramenta que facilite a comercialização direta, eliminando intermediários e fortalecendo a renda e a autonomia dos produtores.
De forma complementar, a análise dos dados provenientes dos consumidores permitiu aprofundar a compreensão sobre as demandas e expectativas de quem busca acessar a compra de alimentos saudáveis diretamente de quem produz. Os dados indicaram um público majoritariamente feminino, branco, com alta escolaridade e domínio de tecnologias digitais, mas que ainda encontra barreiras de acesso aos alimentos agroecológicos. Identificou-se também um gasto médio entre 51 e 100 reais por compra e predominância das faixas etárias entre 40 e 59 anos.
Informações preliminares para construção da plataforma e-COO
Com base no conjunto de informações sobre os agricultores e consumidores, definiu-se que a plataforma deveria contar com uma interface simples e acessível, priorizando a usabilidade por públicos com diferentes níveis de letramento digital, especialmente acima dos 40 anos, e integrando canais de comunicação ágeis, como aplicativos de mensagens. Ao mesmo tempo, os dados apontaram a necessidade de ampliar o alcance da iniciativa, promovendo justiça alimentar por meio da inclusão de consumidores de diferentes raças, classes sociais e territórios com menor acesso a alimentos saudáveis. Assim, os dados levantados com agricultores e consumidores não apenas orientam decisões conceituais sobre o desenho da plataforma, como também influenciam diretamente sua implementação técnica e operacional.
Essa tecnologia social foi construída no aplicativo de mensageria Telegram (como um miniapp), um software livre e de uso gratuito. Dessa forma foi possível a construção de uma plataforma democrática e de livre acesso à todos que utilizam celular ou desktop. Ela funciona com os agricultores familiares do projeto que ofertam em um determinado período da semana, a partir de um site que alimenta a plataforma no telegram, e da mesma forma os consumidores compram em outro período da semana diretamente por mensagens no aplicativo. O Armazém e-COO se mantém como centro de distribuição e espaço para feira presencial semanalmente. Apesar da plataforma ser intuitiva e de fácil acesso, foi necessário fazer uma formação com os agricultores para construir o letramento digital necessário para operar o site que ofertam da melhor maneira, e esse diálogo ocorre de forma contínua entre agricultores – equipe social – equipe tecnológica.
Construção da Plataforma e-COO
A construção da plataforma teve participação dos agricultores como criação de dados para embasar de que forma se daria a tecnologia em relação à dinâmica e facilidade de uso. Atualmente o projeto se encontra no início da alfabetização digital da plataforma pelos agricultores integrantes do projeto. Constantemente são levadas melhorias e modificações para a equipe técnica, tanto por parte dos bolsistas, como pelos agricultores e consumidores que utilizam a plataforma. Esse processo é por vezes nomeado como “transferência tecnológica” mas na verdade o conhecimento não é transferido, ele é construído e deve ser apropriado por um processo de aprendizagem e letramento, pode-se dizer que é o uso e domínio da tecnologia. Nesse sentido, existem diversos desafios já mapeados por Renato Dagnino:
Substituir a ideia ingênua e ineficaz da “oferta” ou transferência de conhecimento (e de tecnologia) produzido pela comunidade de pesquisa socialmente sensibilizada para atores sociais que o “demandam”, por aquela da construção coletiva de conhecimento de forma não excludente e com a incorporação dos valores, interesses e saberes desses atores, será o desafio permanente desta frente de trabalho (Dagnino, 2014, p.307).
Ao longo de dois anos de projeto, os agricultores criaram um vínculo entre si e nas feiras presenciais estão mantendo contato e fidelidade com os consumidores, em geral professores, estudantes e moradores dos bairros que abraçam a FURG. É preciso encontrar maneiras para que estes agricultores se apropriem não apenas da tecnologia, mas também da gestão participativa, que se constrói através das formações e no acompanhamento sistemático aos acontecimentos de todas as feiras.
Existem diversas variáveis para o funcionamento da futura cooperativa da agricultura familiar. São elas: o impacto das mudanças climáticas, o apoio de organizações públicas para seu funcionamento, a participação da comunidade universitária e os moradores do entorno como consumidores, a cooperação entre agricultores, entre outras. Esses aspectos são mapeados e a partir de seu reconhecimento e identificação, se inicia um processo de incorporação de possíveis mediações coletivas.
Formações presenciais no Armazém e-COO
Ainda que algumas formações já tenham ocorrido durante a inauguração do Armazém e-COO, haverá a retomada de encontros mensais com temas como cooperativismo, tecnologia social, economia solidária, autogestão, entre outros que surjam da própria prática cotidiana. A partir desses espaços formativos será possível discutir questões essenciais, como a precificação dos produtos, entre outros. Em muitos casos, agricultores acabam reduzindo os preços para competir nas feiras, reproduzindo uma lógica mercantilista. Entretanto, no contexto de uma cooperativa solidária, os valores devem refletir os custos reais de produção e respeitar os princípios do trabalho justo. Esse processo de desconstrução da lógica concorrencial exige tempo, escuta e processos educativos continuados.
Para a consolidação de uma tecnologia social, existem processos de melhorias e aperfeiçoamentos da plataforma tecnológica para melhor uso de seu público usuário, e da mesma forma se dá a gestão do Armazém. Os agricultores vão se apropriando da gestão aos poucos, em tarefas, até que superem medos e dificuldades até aperfeiçoarem este trabalho e atinjam a tão sonhada autogestão. Euclides André Mance constata que:
A gestão de uma rede solidária deve ser necessariamente democrática, pois a participação dos membros é inteiramente livre, respeitando-se os contratos firmados entre os membros. Entre suas características estão: descentralização, gestão participativa, coordenação e regionalização, que visam assegurar a autodeterminação e autogestão de cada organização e da rede como um todo (Mance, 2002, p.3).
Levando em consideração o que mesmo autor delineia quatro são os critérios básicos de participação nas redes solidárias: a) que nos empreendimentos não haja exploração do trabalho, opressão política ou dominação cultural; b) busque preservar o equilíbrio ecológico dos ecossistemas; c) compartilhar significativas parcelas do excedente para a expansão da própria rede; d) autodeterminação dos fins e autogestão dos meios, em espírito de cooperação e colaboração.
Prestação de contas
Atualmente a prestação de contas e o controle dos produtos (entrada/saída) ainda é finalizada pela equipe do projeto, muito embora os agricultores tenham obrigação de conferirem a prestação de contas e a inclusão do estoque a ser comercializado. Estas são duas atividades que os agricultores têm uma certa resistência, o que inquieta bastante a equipe. A prestação de contas é realizada com transparência, normalmente a cada semana é compartilhada com todos os agricultores num grupo do Whatsapp, dessa forma eles atuam na prestação de contas, conferindo se o pagamento está correto, mas com o decorrer do projeto esse trabalho será inteiramente de responsabilidade dos agricultores em forma de rodízio, conforme pensem a estrutura da organização.
Conclusão
Este trabalho apresentou as ações desenvolvidas até o momento na construção da plataforma e-COO, voltada à aproximação entre agricultores locais e consumidores, bem como na consolidação do espaço físico. Todo o processo foi orientado pelos princípios da tecnologia social, da economia solidária e do cooperativismo de plataforma. Considerando que a autogestão é um dos princípios que entrelaça esses temas e se constrói de forma gradual, observa-se um potencial concreto de continuidade do Armazém e-COO sob a gestão dos agricultores, especialmente diante de sinais de apropriação e organização autônoma já identificados pela equipe do projeto.
Esse processo de construção coletiva não se restringiu à criação de uma estrutura física ou digital, mas envolveu, desde o início, um esforço de escuta e compreensão das realidades locais. A construção da plataforma e-COO até agora, evidenciou a relevância de compreender o contexto social em que se pretende atuar antes da implementação de uma tecnologia digital. O uso de questionários para construção de indicadores sociais, foi fundamental para compreender o perfil dos agricultores familiares, suas necessidades, formas de organização e os obstáculos enfrentados no cotidiano. Portanto, a escuta qualificada e o mapeamento de dados sociais não apenas subsidiaram decisões estratégicas no desenvolvimento da plataforma, como também reafirmaram o papel da pesquisa de campo como etapa essencial em qualquer proposta de inovação social comprometida com a transformação territorial e com a promoção da justiça social.
Perspectivas futuras
A partir desse mapeamento social e da escuta ativa dos sujeitos do território tornou-se possível identificar não apenas as potencialidades da iniciativa, mas também seus principais desafios. Ficou evidente que, embora a ferramenta represente uma alternativa viável para promover práticas autogestionárias e solidárias, ela também enfrenta limitações importantes, sobretudo diante das desigualdades socioambientais acentuadas pelos eventos climáticos extremos e pelas contradições da lógica neoliberal. Assim, o cooperativismo de plataforma, apesar de seu caráter inovador e transformador, ainda precisa enfrentar os obstáculos estruturais impostos pela concentração de poder e de riqueza que caracteriza o sistema econômico dominante.
Nesse cenário de tensões e aprendizados, o espaço físico do Armazém e-COO assume um papel ainda mais estratégico. Além de contribuir para o fortalecimento da agricultura familiar, se torna um espaço vivo de formação e construção coletiva. A vivência com a plataforma e as ações do projeto apontam para estratégias institucionais e comunitárias que considerem a realidade dos agricultores familiares e que apoiem o desenvolvimento de tecnologias construídas a partir do território. Assim, mesmo em meio à adversidades, reafirma-se a potência da organização dos agricultores familiares e autogestão como caminhos para promover segurança alimentar, justiça social e transformação social.
Artigo publicado na Revista Ambiente & Educação: Revista de Educação Ambiental pelas autoras: Giovanna Soares, Elisa Stuani Dosso, Lucia Nobre.
Confira o trabalho original pelo link: Projeto e-COO: uma proposta de Tecnologia Social e Cooperativismo de Plataforma para a agricultura familiar de Rio Grande/RS


